segunda-feira, 7 de maio de 2012

Ainda sem

As burocracias da vida são mesmo um saco. Muito papel que vai para o lixo, muitas horas desperdiçadas em colóquios inúteis, muito engarrafamento no Centro da cidade... Eu sempre tentei driblar meus compromissos, mas uma hora ou outra eles me apanhavam pelo colarinho.

Eu já tinha mais de meio século nas costas cansadas e isso já estava me pesando pelo menos uns dois. Minha paciência estava praticamente esgotada. Não era apenas para os compromissos de trabalho que eu estava indisposto, estava saturado até mesmo das coisas que eu gostava. O que eu queria mesmo era abandonar tudo – incluindo a mim mesmo –, e rumar para uma praia no meio do nada. Ficar lá o dia inteiro pintando aquarelas e, ao fim da tarde, tomar uma água de coco ouvindo Toni Bennet.

Estacionei o carro após uma hora de trânsito rançoso da Gávea até a Avenida Rio Branco. Andei de terno preto sob o sol escaldante por pelo menos dez minutos. Com um trânsito tão intenso é claro que vagas não são encontradas com facilidade, nem mesmo nos estacionamentos, mas, paciência. Sou um grande procrastinador desde a minha mais tenra infância e esse é o hábito mais arraigado que tenho, devo admitir. Acho que estou procrastinando demais. Até a minha morte, inclusive.

Finalmente entrei no prédio. As coisas não poderiam ficar piores: o ar condicionado estava precário e a fila de acesso aos elevadores era medonha, dando voltas no enorme saguão. Eu tinha de esperar, não tinha jeito. Meu físico maltratado não aguentaria 24 lances de escada. O escritório para onde eu ia era no décimo segundo andar. Amaldiçoei o mundo inteiro dentro daquele paletó apertado, quase degolado naquele nó infeliz de gravata e sentindo o suor minar por todo o meu corpo como se eu estivesse dentro de uma sauna. Uma gota generosa escorreu pela minha perna até a panturrilha quando pensei que ia enfartar.

– Não vou sobreviver, pensei.

– Se não morrer de enfarte morro de raiva.

Junto com o meu pensamento chegou um elevador que permaneceu vazio enquanto todos ao mesmo tempo se viraram para mim, como que esperando eu entrar primeiro. Assim o fiz. Fui andando a passos curtos, meio receoso, enquanto olhava para aqueles rostos compenetrados voltados pra mim. Passei por todos e entrei. O ascensorista era um senhor de baixa estatura e trajado elegantemente, que, ao contrário dos demais no saguão, sorriu para mim e perguntou em tom solene para qual andar eu iria.

– Décimo segundo, falei.
A porta do elevador se fechou sem que ninguém mais entrasse e me vi sozinho. O ascensorista tinha sumido. Isso era estranho, certamente, mas, mais estranha ainda a coisa foi ficando após passar do segundo piso. Cada andar tinha uma porta diferente que balançava com a alta velocidade do elevador, demonstrando a debilidade do aparelho. Era como se ele próprio não tivesse uma porta.

A velocidade só fazia aumentar e o tempo pareceu dilatar-se, pois, naquele ritmo, me espantei ao ver no visor 18º andar. Tive a impressão de estar num trem descontrolado e percebi que ele não iria parar, e que, quando chegasse ao último andar, ou ele romperia o teto indo se espatifar no meio da avenida ou cairia dentro do poço.

– Vou morrer! É hoje que a minha procrastinação acaba!

Segurei-me pateticamente nas paredes trêmulas de aço velho enquanto minhas pernas débeis e a pressão da gravidade queriam me jogar no chão. A cobertura do prédio foi rompida sem nenhum ruído, contrariando minha antevisão catastrófica. Através do aço, vi a atmosfera e olhei para baixo. Lá estava a cidade ficando ainda menor, com seu tumulto e barulho em volume zero.

Olhei para os lados e vi as nuvens, vi raios que rasgavam o campo magnético da Terra e sumiam rapidamente enquanto eu ascendia. Imaginei que as centenas de quilômetros da atmosfera já estavam sendo vencidas quando vi a curvatura da Terra. Do terror fui ao êxtase olhando as órbitas baixas dos satélites; continuei subindo junto às porções gasosas superiores já diluídas no espaço Sideral.

Suavemente o elevador foi parando e a porta se abriu. Uma brisa marinha chegou às minhas narinas antes que a bela visão da praia dourada e do tranquilo mar verde esmeralda alcançasse minhas retinas. Apesar da escuridão e da proximidade de Vênus, Marte, Júpiter e suas luas da aparente abóbada celestial que encerrava aquele pequeno paraíso incrustado no vácuo, os raios do sol recobriam a areia e penetravam a água verde diáfana. Estendi o pé e toquei a areia morna.

Estava descalço e vestido com uma malha confortável. Tomado por um relaxamento que me fez querer espreguiçar e bocejar a um só tempo iniciei uma lenta caminhada, acariciado pela brisa do mar sideral na mais perfeita paz, mas, ao chegar perto da água, deparei-me com um mar incontido e insurgente, encrespado numa onda estática e imperiosa, erguida como uma dura parede feita de vidro e de vontades.

Fui me afastando de costas, calculando meus passos e contendo meus movimentos. A onda era realmente intrigante, parecia algo vivo e voluntarioso ao mesmo tempo em que morta, cristalizada num verde sem espuma, sem movimento. Era um mar parado, um vento circular, mas ameaçava. Sentia que bastava um tropeço para que ela viesse sobre e mim e me tragasse, bem como à própria praia, que lhe impunha com fragilidade algum limite.

Só queria voltar ao elevador e estar de novo dentro do meu paletó suado no saguão do edifício na Avenida Rio Branco quando ouvi um ruído e virei o rosto lentamente. Vi, então, uma cena bem curiosa: um cachorro de pequeno porte, devorando com uma só bocada um cão maior. Ele veio em minha direção e corri o mais rápido que pude, mas ele foi mais rápido e mordeu minha perna. Com custo me desvencilhei dele e entrei no elevador, apertando o primeiro botão que vi.

A porta se fechou e um turbilhonamento alucinante teve início. A lua, infinitas estrelas, cometas com suas fabulosas caudas de gelo cintilante, alguns meteoros grandes e um comboio de milhões e milhões de outros menores estavam ali, a um palmo de mim. Cerrei meus olhos com a vertigem e fui caindo, banhado num suor frio e revirado em náusea. Abri os braços o máximo que pude agarrando tenazmente as paredes do elevador.

Ainda com os olhos fechados e apavorado com a queda uma segunda consciência me emergiu. Abri os olhos e vi o teto bolorento do meu quarto, estatelado em minha cama e agarrado às suas extremidades.

– Pesadelo, pensei.

Senti um formigamento na perna. Olhei para ela e lá estava a mordida do cachorrinho e meu sangue, já seco.



sexta-feira, 23 de março de 2012

Atirando flechas em nuvens


Atirando flechas em nuvens, de repente, quem se feriu fui eu.
As mãos e os olhos...
O que eu queria afinal? Derrubá-las?
Ora, elas são invencíveis!
A única precipitação que consegui foi a minha:
Meus olhos desbragando-se em lágrimas e o meu corpo atirado no abismo!
Ora, as nuvens cumprem um ciclo infinito.
E eu?
Eu às vezes nem mesmo existo!
O que de mim evapora nunca mais volta...
E elas lá, altivas.
Delicados cristais de gelo ou brutas massas de vapor d’água e eletricidade.
Agora mesmo despencam em estrondo.
E eu?
Eu me recolho quilômetros abaixo delas sem poder me mexer, num mundo confinado em um cisco.
O que é que pode te levar as alturas ou te quebrar os ossos?
Pergunte as nuvens.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Um dia comum ou Caindo na real

Demorou 24 horas para que as lágrimas ganhassem força e me vencessem. Caíram. Não pude mais contê-las. Senti meus olhos se inundarem, e desta vez, irremediavelmente. A primeira foi a do olho esquerdo. Abundante, morna, ácida. Escorreu rapidamente até entre os meus seios; Logo em seguida a do direito, que se juntou a primeira no mesmo lugar. 

Senti meu corpo durante a noite, meio insone, entre o sono e a vigília. Ele buscava o sonho, queria o nirvana. Sonhei muitas coisas e acordei às 10h, com o corpo latejando de uma extremidade a outra. A cabeça ainda doía levemente.

Fui ao banho. Queria que a água quente me recolhesse e confortasse como seu abraço quase esquivo. Nada na vida é sem risco... Disso eu já sabia há muito tempo.
Que sofrimento burro! – pensei.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Perambulando entre estrelas e desejos


Estou entre Touro, Órion e Gêmeos.
Vou de um a outro, outro a outro e de outro a um – do fogo sanguíneo e cintilante do olho do Touro, Aldebaran, à incandescência vermelha de Betelgeuse, que repousa no ombro do Caçador, até a chama dourada eterna de Pólux, nada penso além da sua mortalidade.
*
Se for mais para cima, não vou resistir ao Auriga, e vou me fundir a Capella. Mas o que eu quero mesmo é te amar na constelação do Leão. Você, só você, entre sete Galáxias.

**
De Betelgeuse à Rigel, meus átomos se fundiriam e eu seria a mais pura energia nuclear.
Saltando de um extremo ao outro do espectro, do vermelho para o azul, viajaria do ombro ao pé do Caçador, num gozo sublime que me transformaria em radiação cósmica de fundo, exaurida no leito das estrelas. 

Horse Head Nebula (Barnard 33)
***
Lá o meu inconsciente sempre enxergou a volúpia de uma mulher transpirando, em vez da Cabeça do Cavalo. O corpo dela é um chicote impetuoso flagelando nuvens de poeira e gás. Seu pescoço pendido para trás, seu busto como um mastro... Sabe-se lá o que ela quer alcançar. Só a mente infinita do cosmos poderia decifrar. Entretanto, no auge da inconsciência bruta do seu desejo em infinita ebulição, dá vida a novas estrelas.


 


quarta-feira, 14 de março de 2012

A ilusão um dia dá as caras



Aquele dia foi inesquecível. O calor era insuportável e o ar condicionado das lojas às vezes era tão intenso que gelava meus ossos. Eu caminhava debaixo daquele sol sentindo a profusão dos perfumes maravilhosos de coquetes empertigadas e a pestilência sórdida do esgoto que vazava dos bueiros. A sofisticação e elegância dos executivos bem vestidos e a mendicância faminta e drogada dos pedintes se misturava como uma coisa só e eles eram uma turba.

Um homem totalmente deformado se arrastando no meio da Rua Dias Gomes me impressionou, embora eu o visse todos os dias. Como ele era miserável! E como era chocante a minha petrificação anestesiada diante daquele horror. O contraste era chocante e mais chocante ainda era como a minha percepção estava ampliada. Tudo me parecia tão mais vultuoso do que o usual!  

Talvez alguma tristeza se tivesse apoderado de mim por razões que agora não vem ao caso. Há muito tempo eu tinha aprendido a canalizar o meu sofrimento para um lugar muito mais profundo do que os olhos. Agora ele macerava algo muito mais íntimo e intocável em mim e muitas vezes eu já nem detectava. Isso era atormentador? Não. Era libertador! Era uma imensa máquina que moía até pedra e destruía tudo, tudo o que eu não queria que existisse.

Para alguém que se doutrina sistematicamente a não-ilusão, a realidade crua, era quase um afã delicioso em busca de sensações prosaicas. Eu não me iludia com facilidade, mas queria e as ilusões são pacientes. Elas ficam cercando e esperando a menor vulnerabilidade para se instalarem com triunfo no coração mais realista.

Eu tinha acabado de perder a ilusão de que ‘aquilo’, que eu nem ao menos sabia o que era, seria tangível de alguma maneira. Eu tinha caído na real com tanta violência que a realidade estourou meus tímpanos gritando que a única coisa que eu poderia seguir alimentando era a minha imaginação, mas o que eu queria, além disso?

Nem mesmo o desejo incipiente que eu recalcava a duras penas embaixo de muitas camadas de verniz poético, o desejo bruto dos apaixonados, dos pretensos amantes, seria saciado. Teria que arrancar-lhe as garras da minha carne quase sempre esquecida, porém muito viva, acabara de descobrir... O delírio era agudo, mas não podia pensar nisso naquela altura dos acontecimentos. Até porque, eu não poderia suportar que todo o meu exercício lúdico com uma construção minha tão elevada terminasse nas mais subterrâneas camadas da fisiologia humana.

Além do mais, ele era etéreo, volátil, um contra censo com todos aqueles séculos que ele carregava na cabeça e no coração, que lhe pesavam mais do que chumbo no coração das estrelas distantes.

Tudo isso ficaria suspenso naquele mundo imaginário cuidadosamente construído pelo acaso e eu iria seguir com a minha vida comum pelas ruas da realidade. Continuei pensando e andando com a cabeça baixa até que cheguei ao meu destino. 

segunda-feira, 12 de março de 2012

Fernanda 'digitando e andando' modificado (um pouco) por Luiz Alphonsus


Andando pela rua, eu vejo um muro gigante cheio de horríveis janelas azuis esverdeadas, nem sei bem se é essa cor mesmo, ou se posso vê-la ao contrário. A temperatura do meu corpo, como reflexo do ambiente, se altera a cada segundo enquanto ando lentamente digitando esse texto aqui.
Olho para cima e vejo um estreito, no entanto, incomensurável e profundo corredor azul celestial.

Passei em frente a STARfucks e ouvi MILES, Kind of Blue.

Cheguei ao alcance do mar: uma brisa marinha me confessa o quanto somos serem comuns e rasteiros. Principalmente por perceber um numero enorme de pessoas que estavam ali, pregadas no chão olhando o mar, com uma atitude sem nenhum significado.

Ich – Ich war schon einmal hier


O objetivo era limpar o apartamento. Não sabia como começar, tamanha era a desordem e sujeira. Comecei automaticamente pela varanda, de fora pra dentro é mais fácil, pensei. O que eu queria mesmo era ler meus textos do Freud de introdução à psicanálise, mas, a vida prática demandava meus cuidados urgentemente, como se fosse ela o mais importante. A vida tem mesmo dessas coisas...

Já de há muito eu não ouvia música. – Notebook não serve. Já tô cansada das mesmas músicas, pensei. Fui então ver se o Rupert tinha algum CD novo pra me emprestar. Rupert é meu vizinho gato (a despeito do nome esquisito). É um flerte, mas sinto que não vai passar disso, afinal, minha mente está do outro lado da cidade e não no apartamento ao lado. Eu sempre preferi as coisas complicadas. O Rupert não estava pra variar. Lembrei então de uns CDs velhos que eu tinha surrupiado de um ex-namorado e fui procurar. Estavam tão empoeirados quanto o aparelho de som, no qual eu não mexia há mais de um ano.

Achei um Renaissance e comecei com ele. Can you understand? começou a tocar e eu fiquei animada... Continuei pra lá e pra cá arrumando enquanto a música seguia. Passado um tempo, sentei pra procurar o que eu tinha além de Nação Zumbi, coisa que eu não ouviria hoje em dia e que ficou num passado que eu não quero recordar. Olhei, olhei... Pronto! Deparei-me com algo que eu não esperava. Estava ali, um bloco significativo do meu passado, um passado bem anterior à “Nação Zumbi”, do qual eu mal me lembrava. Mas esse valia à pena recordar.

Coloquei o CD. A música começou e despenquei num quase autêntico buraco de minhoca. As paisagens eram indiscerníveis, muito confusas, eu não consegui ver quase nada. Daí seguiu-se o meu espanto! Não fui para um passado nostálgico ou familiar, mas fui para o completo desconhecido – nenhuma cena, nenhum cheiro, nenhuma memória. Deparei-me com uma estranha ali, estancada em algum ponto entre oito e dez anos atrás.

Reconheci as músicas e até consegui cantar alguns trechos, mas não me lembrei de absolutamente mais nada. Fiquei ali, suspensa, tentando pelo menos recompor visualmente minha antiga figura, mas nem ao menos isso consegui. Não tinha a menor ideia de como eu era, ou me vestia ou do que gostava naquela época além daquela banda psicótica.

Continuei ouvindo a música e curtindo naquele não-lugar entre o que mal me lembro e o que esqueci completamente, e lá uma parte de mim ou do que eu tinha sido continuou parada. A propósito, o CD chama-se ECHOS.